Diz o Senhor: Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos Céus. Mas esta justiça só será superior à deles, se a misericórdia triunfar sobre o juízo. E que há de mais justo e digno para a criatura, feita à imagem e semelhança de Deus, do que imitar o seu Criador, que estabeleceu o perdão dos pecados como princípio de renovação e santificação dos crentes, a fim de que, evitando a severidade do castigo e suprimindo todo o suplício, o pecador recupere a inocência e o fim do pecado seja a origem da virtude.
Assim a justiça cristã pode ser superior à dos escribas e fariseus, não abolindo a Lei mas rejeitando a sua interpretação carnal. Por isso o Senhor, instruindo os discípulos sobre o modo de jejuar, disse: Quando jejuardes, não andeis tristes como os hipócritas, que desfiguram o rosto para mostrar aos homens que jejuam. Em verdade vos digo: receberam já a sua recompensa. Que recompensa, senão a do louvor humano? Pelo desejo deste louvor, apresenta-se muitas vezes uma aparência de justiça e, em vez de procurar a boa consciência, busca-se a falsa reputação; e deste modo, a iniquidade, que se vê acusada na sua dissimulação, alegra-se com a enganadora apreciação dos homens.
Quem ama a Deus contenta-se com agradar Àquele que ama, porque não se pode esperar maior recompensa do que o mesmo amor; e o amor vem de Deus, porque o próprio Deus é amor. A alma pura e santa sente-se tão feliz por estar cheia deste amor que não deseja qualquer outra felicidade. É de facto uma grande verdade o que diz o Senhor: Onde está o teu tesouro, aí está o teu coração. Que é o tesouro do homem senão a acumulação dos frutos do seu trabalho? Cada um recolhe o que tiver semeado: conforme o trabalho assim será o proveito; e onde se concentra a alegria do êxito aí se prende a solicitude do coração. Mas como há muitas espécies de riqueza e diversas causas de alegria, o tesouro de cada um é a satisfação do próprio desejo; e se este se limita aos bens terrenos, tal satisfação não pode trazer a felicidade, mas a infelicidade.
Pelo contrário, aqueles que aspiram às coisas do Céu e não às da terra, nem estão presos aos bens que passam mas aos bens eternos, alcançarão uma riqueza incorruptível, aquela de que fala o Profeta: A sabedoria e a ciência são as riquezas da salvação, o temor do Senhor é o seu tesouro. Por meio destes tesouros da justiça, com o auxílio da graça divina, até os bens terrenos se transformam em bens celestes, quando muitos se servem destas riquezas, justamente herdadas ou justamente adquiridas de outro modo, como instrumentos de bondade. Distribuindo para sustento dos pobres o que possuem em abundância, acumulam para si uma riqueza imperecível, porque aquilo que distribuíram em esmolas jamais o poderão perder; estes têm justamente o seu coração onde têm o seu tesouro, porque a maior felicidade consiste em valorizar as riquezas de modo a fazê-las aumentar, sem o temor de as perder jamais.
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TUDO CONFORME A LEITURA dos Sermões de São Leão Magno, papa (Serm. 92, 1.2.3: PL 54, 454-455) (Sec. V)